DO PECADO À VIRTUDE: A INVEJA









DO PECADO À VIRTUDE: A INVEJA


Em uma sociedade narcisista e flagratemente egocêntrica, todos se sentem invejados, mas ninguém é invejoso. É o chamado pecado sem pecador. Importante, para início de análise, diferenciar inveja de cobiça. A segunda é o desejo que eu tenho de um bem ou algo o qual não me pertence. Um exemplo típico é o desejo de se ter um carro tal como meu vizinho tem, ou possuir aptidões que uma determinada pessoa possui. Nem sempre a cobiça é negativa, em alguns casos ela serve como alavanca para o cobiçador melhorar sua vida, como aprender um novo idioma, uma vez percebida - e almejada - essa qualidade no outro. 

Já a inveja sempre é ruim. Não se trata de eu desejar seu emprego, seu casamento, suas conquistas, isso seria cobiça; a inveja, de forma mais sofisticada e terrível, é a tristeza que eu sinto porque você é feliz com essas coisas. De modo didático, a distinção entre cobiça e inveja versa que uma é o bem ambicionado para mim; e a outra é a dor sentida pela felicidade alheia, sem levar em conta minha vontade de ter ou não àquela felicidade, e sim meu sentimento mesquinho em constatar a alegria do meu semelhante causando em mim perturbação e desgosto.

Isso posto, mergulhando mais nos conceitos de inveja e de suas características, faz jus retratá-la como um monstro cego, imbuído em um erro estratégico, pois, em tese, pensando como um invejoso, nem ele quer chegar aonde o invejado está, e tampouco estabelece uma meta para se ter aquilo desejado. Descortina-se aí um drama irresolvível, embasado pura e simplesmente no agravo de ver o outro feliz. E nem pense em usar mais o termo "inveja branca", além de ter cunho racista - associando o branco ao bom e o preto ao ruim, soa inverossímil, pois não existe, de fato, inveja positiva.

A felicidade, seja ela afetiva, familiar, corporal ou espiritual, é uma rajada de luz que rasga a escuridão e ilumina quem estiver pelos cantos. Pouca coisa incomoda tanto a dor do invejoso do que ver a felicidade das pessoas. Uma analogia possível a esse cenário é imaginarmos um grupo de indivíduos de um lugar, onde todos pensam relativamente igual, frequentam os mesmos ambientes, comungam dos mesmos ideais, etc.; nessa bolha, o sentimento da inveja estará adormecido, afinal, todos os sujeitos estão padronizados. Tudo muda quando um terceiro fura essa redoma, com pensamentos, hábitos e crenças distintas. Inequivocamente, essa ruptura poderá acender a chama da inveja e gerar conflitos a posteriori.

Contudo, é válido ater-nos à síndrome da inveja. Nada mais é que aquela ideia fixa e pretenciosa ostentada por algumas pessoas de sentirem-se o tempo todo invejadas. Na maioria das vezes, tal impressão é enganosa e revela um comportamento vicioso do sujeito em ser chamariz. Por ter baixo autoestima, ele alimenta o pensamento que é invejado com o objetivo de ter a sensação de pertencimento e ser bem visto pela a sociedade. Ao forjar essa realidade, o produto daí extraído é o oposto do que se ansiava, passando de suposto invejado para o papel de invejoso da notoriedade que lhe falta.

O invejoso é alguém que parou de analisar-se, de desafiar-se, e centrou-se sua energia no objeto da sua inveja. Essa, por si só, sempre tem como alvo alguém próximo. E daí que em Dubai tem um xeique bilionário ou se Carlos Magno conquistou toda a Europa? Incomoda mais a promoção do meu colega de trabalho ou a bela reforma promovida por minha tia em sua casa. Eles estão próximos, logo desperta em mim a ilógica tristeza de vê-los contentes. Assim raciona nocivamente o invejoso, em um círculo ininterrupto e doentio.

Talvez um dos antídotos contra a inveja, do ponto de vista do invejoso, seja justamente o autoconhecimento. Mirando-se para si, descobre-se todos os pontos sombrios que temos, as dores ali existentes e o melhor jeito de trabalhá-las. No diálogo consigo mesmo, não existem expressões falsas ou frases enviesadas,  o contexto mostra-se real e cru, como assim precisa ser. Mudança demanda decisão e coragem! E sobre o invejado, bem, ainda vale recomendar acostumar-se a vencer em silêncio e ajudar no anonimato; o primeiro afasta a inveja, o segundo enche-te o coração.



Mal Secreto

Se a cólera que espuma, a dor que mora
N'alma, e destrói cada ilusão que nasce
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse, o espírito que chora,
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo
Como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!

 

(Raimundo Correia)


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