DA SOLIDÃO À SOLITUDE




DA SOLIDÃO À SOLITUDE 

Uma questão um tanto curiosa está empregada na narrativa fundacional da nossa cultura, o Gênesis; ali, prenuncia-se a vontade de Deus na criação; dando origem a todos os animais, em pares, macho e fêmea, de acordo a espécie e o habitat. Porém, um único ser fugiu a essa máxima, e ainda que carregasse a imagem e semelhança divinal no seu âmago, nasceu sem ninguém; Adão. Ao menos no princípio, o primeiro homem era uno em sua classe e a ideia era manter a condição nesse patamar, contudo as coisas mudaram.


Embora o personagem bíblico não tenha reclamado por estar só, viu-se a necessidade de criar uma companhia para ele, e de sua costela surge Eva. Até então, ele desconhecia a solidão, pois jamais experimentara contexto diferente daquele de início. A partir do surgimento da sua companheira o cenário se alterou; agora há um outro, uma mulher, suficientemente distinta dele para assim ter um afastamento minimamente alinhado, mas nem tanto, em razão de assim preservar a humanidade e a prerrogativa do diálogo.


Constitui-se aí uma fórmula engenhosa contra a solidão: é preciso que eu seja ligeiramente diferente das pessoas para evitar que elas sejam o reflexo do meu narciso. De forma análoga, paradoxalmente, exige-se que eu seja muito parecido a elas para haver comunicação e identidade. Afinal, essa última não se constrói a partir do eu, e sim é dada por meus semelhantes e da compreensão desses sobre mim.


Entretanto, há um equilíbrio recomendado amplamente na história da filosofia ocidental que é a capacidade de executar determinadas tarefas individualmente; como ler um livro, e descobrir, ao abrir uma página, através da interação com outra fonte, o autor , de maneira a me marcar e reelaborar internamente o prazer da leitura, gesto esse indelevelmente solitário.


Nesse ponto cabe a divisão entre solitude e solidão. A primeira diz respeito a um estado de isolamento voluntário e positivo; já a segunda é um quadro ligado a dor e à tristeza, com o desejo pulsante de ter companhia e, ainda assim, não se ter. A solitude é, antes de tudo, uma escolha assertiva e consciente de ficar momentaneamente sozinho visando a promoção do autoconhecimento, do crescimento espiritual ou quiçá de um júbilo genuíno. Essa prerrogativa da escolha inexiste na vida do solitário; ele é só independentemente da sua vontade; e isso traz sofrimento para sua vida.


Não é à toa que o isolamento forçado é um tipo de tortura praticada pela sociedade moderna aos transgressores das leis, e os indivíduos infligidos quase sempre desenvolvem doenças mentais, como depressão e ansiedade. A sociabilidade do ser humano é algo primordial e só acontece por meio das relações estabelecidas com as pessoas. E por mais desejável seja a condição de solitude ao sujeito, é imprescindível a ruptura, costumeiramente, desses momentos, a fim de evitar fugas prolongadas da realidade e a quebra do contrato social.


Aquela angústia sentida por mim ao me ver sem ninguém, que na verdade é uma simples casca, um verniz enganoso, escondendo coisas muito mais densas, fato é que, na verdade, não estou me permitindo o exercício prazeroso de olhar para mim, de pensar em mim, acompanhado de um livro, ou de uma xícara de chá, de café, ou simplesmente escutando uma boa música; nesse instante eu transformo solidão em solitude e isso me faz crescer, e passo a ter mais a levar aos outros e com mais faculdade de converter minhas inquietudes em reflexões.


Para tanto, é imperativo a manutenção desperta de minha consciência, pois, caso contrário, sofrerei sozinho ou acompanhado; finalmente, meu ser deve permanecer relevantemente harmonizado com este eu que, na prática, é o outro. Será impossível a interlocução com qualquer indivíduo se me faltar coerência interna para perceber sobre a minha incapacidade de ser outra pessoa; todavia, também eu não sou uma consciência isolada, portanto vivo em comunidade e sou um animal político, já dito por Aristóteles. 


Para arrematar o corolário acima, vale lembrar que os humanos não se tornaram governantes da natureza, senhorios do poder, por terem a pele impenetrável ou por possuírem garras afiadas; e sim porque dispõem da capacidade de compartilhar tarefas com o grupo, de dividir as tecnologias e, com a troca da mútua dependência, condições de perpetuar sua descendência e seguir dominando o mundo. E quer seja na solitude, com o aperfeiçoamento do autoconhecimento, ou no coletivo, em vista do desenvolvimento das suas potencialidades, se nota a complexidade e a força do bicho homem.

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