O CINISMO VIROU REGRA
Alberto é uma pessoa introspectiva, de poucas palavras e avesso a qualquer tipo de preconceito. Ele enxerga o próximo com cortesia e igual em direitos e deveres além de, sobretudo, digno de total respeito. Raul é o típico sujeito extrovertido. Comunicativo irrecuperável, fala aos montes, inclusive de forma negativa de todos. Sobre o diferente, ele é implacável, pois se deleita em ser preconceituoso e, se contrariado nos seus caprichos, não hesita em prejudicar seu opositor. Bajulador inveterado, não se envergonha em mentir e finge adulação com o propósito de ter vantagens futuras.
Ambos são engenheiros e estão hospedados em um hotel para uma conferência naquela cidade. Ao serem recebidos pelo gerente do lugar, Alberto se porta de forma discreta, apertando a mão que lhe foi estendida e com um sorriso fraterno cumprimenta o homem. Raul, por sua vez, é mais espalhafatoso. Sorri largamente, tapeia as costas do seu interlocutor e demonstra interesse por seu trabalho. Ensaia algumas piadas e até conta histórias inverídicas, no intuito de parecer mais familiar. Quando o gerente se afasta, Raul tece comentários pejorativos sobre ele e sua função.
À noite, na hora do jantar, o restaurante encontra-se com pouco movimento. Os dois engenheiros descem para a ceia. Com pouca clientela, os garçons estavam parados e ao perceber esse estado Raul comentou o quanto aquilo lhe incomodava, chamando os funcionários de desocupados. Os serviçais eram em maioria pardos ou negros, e como Raul é racista, ficou com nojo de ser servido por eles. No entanto, Raul dissimula com maestria, não só mantém um sorriso ao ser servido, como também faz brincadeiras com os garçons, puxando conversa e dando-lhes gorjetas adiantadas com o objetivo de forçar intimidade. Embora alguns garçons se sintam constrangidos com o comportamento do cliente, outros se deixam levar pelo embuste, retribuindo o tratamento com sorrisos altos e conversação animada. Já Alberto, em meio aquela palestra, manteve-se sereno e concentrava-se apenas na comida à sua frente.
O gerente, vendo o entusiasmo exacerbado daquela apresentação, chama seus funcionários e os repreendem, afinal eles estão em horário de serviço e isso exige uma postura mais amena. Percebendo a advertência sofrida, Raul diz aos garçons para eles não derem bola ao gerente, e acusa o chefe de ser um opressor. Em outro momento, Raul vai até o gerente e, cinicamente, o trata com deferência e parabeniza-o por ter chamado atenção dos colaboradores de maneira exemplar. Ao deixar o restaurante, Raul resmunga e fala mal de todos, inclusive da comida. Ao irem embora da cidade, na despedida, Alberto é cumprimentado com poucos acenos, já Raul é tratado com se fosse um amigo, e sua ausência deixará saudade naqueles que há pouco o conhecera.
O que vale mais a pena? O resultado provocado que foi conquistar a simpatia das pessoas? Ou a consciência de cada um que sabe, em seu íntimo, como se sente em relação aos outros e a maneira de como realmente considerá-los? No mundo real, ocorre a mesma coisa; e se pensarmos na vida política, o escancaro fica maior. Nesse meio, com raras exceções, vence aquele que domina a arte de agradar, de fazer parecer aquilo que não é e até o oposto daquilo que se é de fato. Vivemos num mundo das aparências e elas contam muito mais do que a essência.
A verdade quase nunca importa porque a mentira se reveste de embalagens bonitas e atraentes. Quando os primeiros portugueses chegaram ao Brasil, presentearam os índios com bugigangas a fim de ganharem a confiança dos nativos. Mais tarde, sem temor, os escravizaram e, aos resistentes, mataram sem pestanejar, tudo isso para explorar até o último recurso existente nas terras até então ocupadas.
Voltando ao relato de Raul, os funcionários do hotel não simpatizaram com Alberto, porque ele os tratou apenas com respeito. Todavia, adoraram Raul, mesmo esse tendo uma índole torta e racista. E talvez o motivo esteja na distração que Raul ofereceu a eles, pois em meio a suas mentiras e falsas palavras, fez passar o tempo de uma noite enfadonha e sem movimento. Viver rodeado de distrações faz a vida parecer menos tediosa. Não importa a realidade das coisas e tampouco o que se esconde atrás das aparências, mas sim a necessidade saciada do autoengano.
E isso explica o sucesso dos piores políticos em detrimento daqueles imbuídos em utilizar seus talentos em favor do coletivo. O sucesso das religiões se explica também nesse foco, afinal as promessas de um futuro melhor é uma isca poderosa para exploração dos incautos fiéis. Dos mentirosos e inescrupulosos, exala a apresentação de um produto melhor e mais emocionante que a honestidade, o respeito legítimo, e a sinceridade. Pouquíssimas pessoas estão preparadas para a sinceridade; preferem viver iludidas e, mesmo desconfiando que estão sendo enganadas, ainda assim optam por ficar nesse estado.
A sinceridade só é considerada algo bom na teoria, pois na prática prevalece a mentira. Se a mulher perguntar para o marido se seu novo corte de cabelo ficou bom, e ele honestamente responder que não, provavelmente a companheira ficará magoada. Mudar essa realidade fantasiosa está cada dia mais difícil. Viver num mundo de ilusões confortáveis é desejável e as pessoas querem exatamente isso. E por mais que o politicamente correto tenha surgido com boas intenções, traz consigo o efeito colateral de fomentar o cinismo em certas condições.
Por medo de externar suas opiniões, muitos sujeitos estão se tornando cada vez mais cínicos. Talvez o melhor dos cenários seja a democracia irrestrita das ideias, e aquelas que coloquem alguém em perigo ou o seu patrimônio, sejam postas em xeque pelas leis vigentes, punindo os autores. Já vivemos em mundo fantasioso, onde coisas e pessoas estão automatizadas, e definitivamente os resultados não são bons; de repente chegou a hora de sermos realmente quem somos, vai que dá certo?
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