MAIS OU MENOS HONESTO







MAIS OU MENOS HONESTO

Certo dia, em uma aula em que meus alunos e eu discutíamos um texto, algo curioso chamou-me atenção. O periódico dava conta de uma família de catadores de papelão que havia achado vinte mil reais no lixo. Ao depararem com a quantia, fizeram o esperado: devolveram ao dono. Como recompensa pelo gesto honesto, o mandatário deu a eles cinco mil reais. Até aí tudo tranquilo. A coisa começou a ficar inusitada quando eu perguntei para a classe sobre o que eles fariam se tivessem no lugar de quem encontrou a grana. Com exceção de um estudante, os demais disseram que devolveriam. Ótimo, pensei! Quase todos estão bem encaminhados. Todavia, há ainda um único a se salvar, e eu queria entender os motivos dele em manter-se em desalinho.  

Ao questioná-lo, sem nenhuma cerimônia, o tal aluno explicou-me seu plano: primeiro, eu guardaria cinco mil reais! Os quinze que sobrariam, eu devolveria. Ele iria ficar grato em receber parcialmente a quantia, assim, com certeza, me daria ao menos cinco mil de gratificação, daí eu ficaria com dez no total e o dono do dinheiro não sairia em completo prejuízo. Ao ouvir aquilo, um misto de perplexidade assaltou-me. Custei a crer naquela interposição, e me coube refletir por um longo tempo a fim de compreender duvidoso posicionamento. Hoje, depois de alguns meses, parece-me mais factível destrinchar a opinião do aluno  –  e ainda me espantar com ela.

Queria afirmar que o raciocínio do aluno é incomum, tratando-se de uma exceção à regra, mas ao fazê-lo estaria mentindo. Parte importante da sociedade brasileira conserva a mesma impressão e agiria igual ou até pior em casos semelhantes. Calcada à sua formação por pessoas de índoles controversas, de ladrões a homens degredados, a estruturação do País revelou-se uma mistura iníqua distante dos valores nobres à alma, como a honestidade. A esperteza por essas terras é vista como atributo dos fortes, em passo dos justos serem reconhecidos a parvos dignos de zombaria. E para esses mais teimosos em resistir aos deboches, tornam-se propagandeados a qual verdadeiros mártires, simplesmente por terem cumprido com o dever.

A desonestidade está disseminada em nosso meio de forma tão enraizada que, quando alguém destoa, balões coloridos sobem ao ar em comemoração festiva. Dos mentirosos, pois a mentira é a mãe da desonestidade, esses elevam o agravo a dois passos adiante. Presumindo que todos mentem, portanto, quase sempre visam algum proveito da situação ou na vil esperança de exasperar o outro. Roubam-se a rodo, engana-se no atacado, com a clara má-intenção de progredir às custas dos infortúnios alheios.  Contudo, há quem defenda sermos mais ou menos honestos, em um expediente onde tira-se vantagem do próximo com certa parcimônia, tal qual confessou o aluno.

Conversa fiada! O subjetivo, na maioria das vezes, não permite meio termo. Não ama-se mais ou menos, nem tampouco confia-se mais ou menos, logo, das coisas ligadas à moral, a honestidade também rechaça o mais ou menos. Ilude-se quem avalia suas atitudes pelo espectro da seletividade em detrimento a uma realidade almejada. Ou se é honesto ou não é, da mesma forma porta-se o amor. E essa tentativa de atenuar desvios comportamentais tem muito a ver com o nosso povo. O jeitinho brasileiro é o retrato fiel de como buscamos maneiras de obtermos ganhos sem parecermos desonestos. A falsa ilusão que os fins justificam os meios inexiste por prerrogativa.

Mais ou menos não serve para nada, salvo para aqueles que anestesiam a mente a fim de dissiparem seus próprios monstros. Mas, o efeito passa rápido, e logo uma nova dose será necessária para continuar a encenação. A vida exige bem mais! Cobra-te aquilo que és; e se te incomodas o reflexo produzido no espelho, talvez seja salutar uma mudança. Ninguém nasce desonesto, mal, ou com qualquer outra característica; tudo isso se fez presente no momento que você decidiu dar abrigo a essas coisas. Do mesmo modo que deu abrigo, poderá expulsá-las sem prévio aviso. És tu o proprietário do teu ser, único e exclusivamente.

Além disso, inicie o processo de expurgo e reverta as más tendências propondo-se ser honesto no começo de tudo. Quer seja nas trivialidades da vida, até mesmo nos relacionamentos mais íntimos que poderás ter. Esse simples gesto poupara-te dores de cabeça mais tarde e te permitirá desfrutar de momentos com mais plenitude.  Trilhar os caminhos tortuosos requer constante atenção, numa espécie de alerta interminável que rouba a paz do sujeito. Prefira a outra estrada, onde as paradas às sombras das árvores sejam agradáveis, com a consciência quieta e sabedora que não há nada a temer. E esqueça o mais ou menos, a não ser que esteja adoçando um suco. 

A gente pode morar numa casa mais ou menos, numa rua mais ou menos, numa cidade mais ou menos, e até ter um governo mais ou menos. A gente pode dormir numa cama mais ou menos, comer um feijão mais ou menos, ter um transporte mais ou menos, e até ser obrigado a acreditar mais ou menos no futuro. A gente pode olhar em volta e sentir que tudo está mais ou menos...

Tudo bem!

O que a gente não pode mesmo, nunca, de jeito nenhum... é amar mais ou menos, sonhar mais ou menos, ser amigo mais ou menos, namorar mais ou menos, ter fé mais ou menos, e acreditar mais ou menos.
Senão a gente corre o risco de se tornar uma pessoa mais ou menos.

              (Chico Xavier)






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