AMOR PRÓPRIO: DA ARROGÂNCIA À SERVIDÃO
AMOR PRÓPRIO: DA ARROGÂNCIA À SERVIDÃO
Narciso, 43 a.C., era um jovem extremamente belo e despertava nos homens e mulheres que o via uma paixão desenfreada. Entretanto, rejeitava todos os seus pretendentes com afinco, um atrás do outro. Certo do tamanho da sua beleza, convenceu-se que ninguém estava à sua altura, e apaixonou-se pela própria figura ao vê-la refletida nas águas de um lago. Mais tarde, isso o levou a ruína.
Pulamos para a metade do século XX, onde Mário Lago nos apresenta Amélia, a tal mulher de verdade. Resiliente, dedicava-se de corpo e alma à família, fazia de tudo para deixar todos alegres, mesmo que isso a aborrece. Não reclamava quando apanhava, não tinha luxo. Enfim, um ser devotado para servir. Amélia era o oposto de Narciso, mas ambos padeceram no mesmo calvário: o excesso e a falta de amor próprio.
Se o tamanho da dose transforma o remédio em veneno, a analogia serve também quando o assunto é amor próprio. Para conceituar, diz-se do sentimento de dignidade, estima ou respeito que cada qual tem por si mesmo. Narciso o tinha em demasia; Amélia vivia na escassez. Esse desequilíbrio amoroso decide quem seremos nós no jogo dos relacionamentos. Da arrogância à servidão, os papéis são diversos, e cabe você escolher por onde quer andar.
A falta de amor próprio interfere em todas as áreas da vida. Isso porque a maneira que nos relacionamos com o mundo é um reflexo da forma que nos relacionamos com nós mesmos. Logo, se você não é capaz de se amar, tampouco amará outra pessoa. E talvez seja por isso que vemos muitas pessoas depositarem sua felicidade, seus desejos e expectativas em cima de alguém; como estão em desalinho consigo, transferem esse fardo a terceiros numa tentativa enganosa de esconder sua falta de amor próprio.
As consequências desse comportamento são diversas, que vão desde a dependência emocional, depressão e ansiedade, e chegam ao cúmulo de levar o sujeito ao suicídio. A falta de amor próprio turva a visão e nos faz enxergar os relacionamentos como uma anestesia capaz de adormecer aquilo que nos dói por dentro. Também distorce a imagem do parceiro(a), no qual esse vira um ídolo a ser reverenciado(a) por um(a) fã sujeito(a) até a humilhação para ganhar um pouco de atenção.
Por outro lado, e não menos adoentada, a postura do indivíduo cheio de amor próprio é a imparável sensação que ninguém presta, com exceção dele. Não há nada mais belo ou mais importante, estou nessa vida para ser servido, pensa o narcisista. Ele manipula as situações do cotidiano sempre a seu favor, pois é um egocêntrico patológico disposto a tirar vantagem - sobretudo emocional a qualquer custo.
E quando um narcisista se junta a um outro que tem pouco amor próprio, o desfecho penoso é quase certo. Há uma intensa exploração do primeiro para o segundo. A vítima, ou melhor, a Amélia da história, será desfigurada nas suas emoções e tornar-se-á a escrava da relação, em um claro e triste processo de anulação da sua personalidade para atender os anseios do(a) explorador(a). Muitas vezes, sequer o(a) explorado(a) nota tudo isso. Quiçá, penso, venha daí as primeiras concepções a embasar o termo relacionamento abusivo tão comumente discutido nos dias de hoje.
Nem tão ao céu, nem tão ao mar, mas terapia é o que há. Perdão pela rima ruim, contudo a ideia é séria. Deitar no divã é conselho certo para as duas personalidades. O narcisista precisa de um choque de realidade e perceber que, do alto do seu Olimpo mentiroso, existe o outro, tão importante quanto ele. A Amélia, no auge do seu desprendimento, compreenderá que ninguém pode ser endeusado, e que o amor nada tem a ver com fanatismo.
Por fim, a mensagem essencial que fica é no sentido de termos equilíbrio, não só nas relações, mas em todos os âmbitos da vida. Viver comedido é conservarmos a consciência de quem somos, para onde queremos ir e também como desejamos trilhar esse caminho. A arrogância não traz nada de bom, a servidão igualmente. No final das contas, o amor próprio em parcimônia vem a calhar, para não nos tornarmos desprezíveis e menos ainda escravos de alguém.
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